1 INTRODUÇÃO

Este capítulo trata da representação do tempo e da mudança nas teorias físicas clássicas (ou seja, não-quânticas). Um dos principais objetivos do capítulo é tentar esclarecer a natureza e o alcance do chamado problema do tempo: um nó de problemas técnicos e interpretativos que parecem impedir as tentativas de quantificar a relatividade geral, e que têm suas raízes na covariância geral dessa teoria.

A abordagem mais natural dessas questões é através da consideração de casos mais claros. Assim, grande parte do capítulo é dedicado à discussão da representação do tempo e da mudança em outras teorias mais bem compreendidas, começando pelos casos mais simples e passando pela consideração de casos que preparam um, num sentido ou noutro, para as características da relatividade geral que são responsáveis pelo problema do tempo.

Deixe-me começar por dizer um pouco sobre o tipo de coisa que tenho em mente ao falar da representação do tempo e da mudança nas teorias físicas, fundamentando a discussão no caso mais traçável de todos, a física newtoniana.

Como questão perfeitamente geral, muitas perguntas e afirmações sobre o conteúdo de uma teoria física admitem dois construtos – como questões sobre características estruturais de soluções para as equações de movimento da teoria, ou como questões sobre características estruturais dessas equações. Por exemplo, por um lado, o tempo aparece como um aspecto do espaço de tempo em que a física se desdobra – ou seja, como um aspecto do fundo em que as soluções para as equações da teoria são estabelecidas. Por outro lado, o tempo é representado através do seu papel nas leis da física – em particular, no seu papel nas equações diferenciais que codificam estas leis. Assim, questões e afirmações sobre a natureza do tempo nas teorias físicas admitirão dois tipos de leitura.

Considerar, por exemplo, a afirmação de que o tempo é homogêneo na física newtoniana (ou, como Newton diria, que o tempo flui equacionadamente). Há dois tipos de factos que podemos considerar como fundamento desta afirmação.

Há um sentido em que o tempo é um aspecto separável do espaço-tempo da física newtoniana e há um sentido em que o tempo, assim considerado, é homogéneo.3.

As leis das teorias de aspecto fundamental da mecânica clássica (por exemplo, o tempo é homogéneo na física Newtoniana), A teoria da gravidade de Newton) são invariantes na tradução do tempo – as equações diferenciais destas teorias não mudam a sua forma quando a origem da coordenada temporal é alterada – por isso as leis de tais teorias são indiferentes à identidade dos instantes do tempo.

No cenário Newtoniano, estes dois tipos de considerações se enredam bem e dão apoio mútuo: há uma consiliência entre as simetrias das leis e as simetrias do espaço-tempo. Mas, em princípio, os dois tipos de considerações não precisam levar ao mesmo tipo de resposta: pode-se considerar um sistema no espaço-tempo newtoniano que está sujeito a forças dependentes do tempo; ou pode-se definir o problema Newtoniano n-corpo em um espaço-tempo que apresentava um instante preferido, mas de outra forma tinha a estrutura do espaço-tempo newtoniano. E à medida que nos afastamos do ambiente familiar da física newtoniana, torna-se ainda mais importante distinguir as duas abordagens: na relatividade geral, as leis têm um grupo enorme (de facto, infinito-dimensional) de simetrias enquanto que as soluções genéricas não têm qualquer simetria.

Ao discutir a representação do tempo e da mudança, este capítulo irá focar-se nas características estruturais das leis das teorias físicas e não nas características de soluções particulares. Para enfatizar este ponto, direi que estou interessado na estrutura desta ou daquela teoria como uma teoria dinâmica.

Abordarei meus tópicos através das abordagens Lagrangiana e Hamiltoniana às teorias clássicas, duas grandes estruturas abrangentes – e intimamente relacionadas – nas quais tais tópicos são naturalmente abordados.4 Grosso modo, em cada uma destas abordagens o conteúdo das equações de uma teoria é codificado em certas estruturas num espaço de possibilidades associadas à teoria.5 Na abordagem Lagrangiana o espaço apresentado é o espaço de soluções para as equações da teoria, que para fins heurísticos podemos identificar com o espaço de mundos possíveis permitido pela teoria.6 No lado hamiltoniano, o espaço apresentado é o espaço de dados iniciais para as equações da teoria, que podemos no mesmo espírito identificar com o espaço de possíveis estados instantâneos permitidos pela teoria.

Na mecânica Newtoniana, a reflexão dentro da estrutura Lagrangiana da invariância das leis da tradução temporal é que o espaço das soluções é invariante sob as traduções temporais: dado um conjunto de trajetórias de partículas no espaço-tempo obedecendo às leis de Newton, podemos construir o conjunto de trajetórias de partículas que resultam se todos os eventos forem traduzidos no tempo pela quantidade t; este último conjunto é uma solução (i.e, é permitida pelas leis do movimento) se e só se o primeiro conjunto for; além disso, o mapa que nos leva de uma solução ao seu tempo traduzido preserva a estrutura no espaço das soluções que codificam a dinâmica da teoria. No quadro hamiltoniano, por outro lado, a invariância das leis da tradução temporal é reflectida pela existência de um mapa que envia um conjunto inicial de dados para o estado em que irá evoluir em unidades de tempo; mais uma vez, este mapa deixa invariante a estrutura sobre o espaço que codifica a dinâmica da teoria. Assim a simetria temporal da dinâmica da teoria é refletida no lado Lagrangiano por uma noção de tradução do tempo e no lado Hamiltoniano por uma noção de evolução do tempo.

A representação da mudança na física Newtoniana também assume formas diferentes (mas intimamente relacionadas) dentro dos quadros Lagrangiano e Hamiltoniano. A mudança consiste em um sistema com propriedades diferentes e incompatíveis em momentos diferentes. Queremos dizer, por exemplo, que há uma mudança nas propriedades observáveis de um sistema de dois corpos se e somente se a distância relativa entre as partículas for diferente em momentos diferentes.

Aximação Hamiltoniana. Especificar o estado dinâmico instantâneo de tal sistema é suficiente para especificar a distância relativa instantânea entre as partículas. Assim, existe uma função no espaço de dados iniciais correspondente a esta quantidade. Um histórico do sistema é uma trajetória através do espaço de dados iniciais. No nosso exemplo simples, uma mudança observável ocorre durante um dado histórico se e somente se a função correspondente à distância relativa entre as partículas assumir valores diferentes em pontos diferentes da trajetória em questão. Mais geralmente, em qualquer sistema Newtoniano, qualquer quantidade de interesse físico (observável ou não) é representada por uma função no espaço dos dados iniciais, e uma trajetória neste espaço representa tais quantidades como mudança se as funções correspondentes assumirem valores diferentes em pontos diferentes da trajetória.

Acesso Lagrangiano. Claramente, nenhuma função no espaço de soluções pode representar uma quantidade modificável da mesma forma direta que as funções no espaço de dados iniciais podem. Mas para cada t, existe uma função no espaço de soluções do nosso problema de dois corpos que atribui a cada solução a distância relativa entre as partículas no tempo t de acordo com essa solução. Deixando variar o t, construímos uma família de funções de um-parâmetro sobre o espaço de soluções. Uma solução para as equações de movimento representa a distância relativa entre as partículas como mudando se e somente se diferentes membros desta família de funções de um-parâmetro assumirem valores diferentes quando avaliados na solução dada. E assim em geral: qualquer quantidade física variável corresponde a essa família de funções de um-parâmetro no espaço das soluções, e mudança é entendida como no exemplo simples de dois corpos.

Tanto pelo tipo de coisa que eu tenho em mente ao falar da representação do tempo e mudança numa teoria física. Antes de esboçar o caminho que este capítulo leva a discutir estes tópicos, talvez seja útil dizer um pouco sobre seu objetivo final – o esclarecimento da natureza do chamado problema do tempo. As discussões sobre o problema do tempo focam tipicamente as versões hamiltonianas da relatividade geral, nas quais o foco é o espaço de possíveis geometrias instantâneas (métricas e segundas formas fundamentais nas superfícies caucasianas). Isto é um pouco lamentável, uma vez que tais abordagens requerem desde o início uma divisão do tempo espacial numa família de hipersuperfícies espaciais – o que parece ser contra o espírito da compreensão habitual da covariância geral da teoria. luz desse fato, há espaço para a preocupação de que alguns aspectos do problema do tempo, como geralmente apresentado, são conseqüências dessa maneira bastante embaraçosa de proceder. Tomo um caminho algo diferente, sempre ancorando minha discussão na abordagem Lagrangiana, que toma como fundamentais histórias completas de sistemas ao invés de estados instantâneos.

A visão desenvolvida abaixo é que, grosso modo, o núcleo do problema do tempo é que, em geral, a relatividade, quando compreendida dinamicamente, não há como ver a evolução do tempo ou a tradução do tempo como simetrias da teoria e, correlativamente, não há uma maneira natural de modelar a mudança através de funções nos espaços que surgem dentro das abordagens Lagrangiana e Hamiltoniana.7 Isto marca um respeito em que a relatividade geral, assim concebida, é muito diferente das teorias precedentes de aspecto fundamental.

O problema do tempo pode soar – não muito urgente. Para ter a certeza, há aqui puzzles. Por que a relatividade geral deveria diferir desta forma das suas predecessoras? Nos antecessores da relatividade geral, a representação do tempo e a representação da mudança estão ligadas em um pacote muito limpo – como é o substituto relativista geral para este pacote? Estas são perguntas interessantes. Mas é claro que ninguém deve esperar que o tempo seja representado na relatividade geral como nos seus predecessores – que ele apresente uma imagem totalmente nova do tempo e do espaço é uma das glórias da teoria. E pode-se pensar também: como a estrutura do tempo espacial varia de solução para solução na relatividade geral, é certamente mais apropriado olhar a representação do tempo nesta ou naquela solução fisicamente realista, do que nas equações da teoria, se quisermos entender o que a teoria nos diz sobre a natureza do tempo em nosso mundo.

O problema do tempo assume um aspecto mais premente, porém, quando se considera a quantização da relatividade geral (ou de qualquer outra teoria que é geralmente covariante no sentido relevante). O projeto de construir teorias sucessoras naturalmente foca nossa atenção nas características estruturais das teorias em questão – na construção de sucessoras, está-se no negócio de fazer apostas sobre quais características das teorias atuais viverão (talvez em uma nova forma), e quais serão deixadas para trás. E técnicas conhecidas de quantização requerem como input não apenas equações diferenciais, mas também teorias de forma hamiltoniana ou lagrangiana. Assim, para aqueles interessados em quantificar a relatividade geral, questões sobre a estrutura da teoria qua dinâmica naturalmente se tornam grandes. E na falta de soluções para os quebra-cabeças acima mencionados, espera-se dificuldades conceituais na formulação (ou extração de previsões) de qualquer quantização da relatividade geral. Assim, desta perspectiva, o problema do tempo é de facto bastante premente.

Este capítulo toma um longo caminho para o problema do tempo. Começo na Secção 2 com as breves introduções à mecânica Hamiltoniana e Lagrangiana, como forma de motivar um pouco do que se segue. Na seção 3, esboço alguns conceitos e resultados importantes da geometria simpática, o campo da matemática que está subjacente à mecânica clássica. Os conceitos aqui introduzidos são cruciais para o que segue: para teorias bem comportadas, o espaço das soluções (do lado Lagrangiano) e o espaço dos dados iniciais (do lado Hamiltoniano) ambos têm estruturas simpáticas. E veremos que vários espaços simpáticos (ou quase simpáticos) surgem mesmo quando um se afasta do caso ideal. Na seção 4, eu esboço a estrutura muito poderosa da mecânica Lagrangiana moderna, com seu aparato de leis locais de conservação.

Na seção 5, eu esboço as imagens Lagrangianas e Hamiltonianas para teorias idealmente bem comportadas satisfazendo as seguintes condições: (i) a geometria do espaço de tempo de fundo admite um grupo de traduções de tempo e a Lagrangiana da teoria é invariante (num sentido adequado) sob a ação deste grupo; (ii) a especificação dos dados iniciais para as equações da teoria é suficiente para determinar uma única solução máxima; (iii) esta solução máxima é definida para todos os valores do parâmetro tempo. Quando estas condições se mantêm, verificamos que existe um grupo de simetrias de tradução de tempo operando no espaço de soluções do lado Lagrangiano, enquanto no lado Hamiltoniano existe um grupo implementando a evolução do tempo no espaço de dados iniciais. Estes dois espaços são isomórficos, e as duas acções de grupo entrelaçam-se de uma forma satisfatória. Um é capaz de dar um relato simples e apelativo da forma como a mudança é representada em qualquer um destes dois espaços fundamentais.

Na secção 6, passo às complicações que devem ser introduzidas na figura quando se deixa cair qualquer uma das condições (i)-(iii) do parágrafo anterior. Finalmente, na secção 7, abordei a representação do tempo e a mudança na relatividade geral. Isto leva diretamente ao problema do tempo.

Como este esboço deixa claro, grande parte do capítulo é dado à exposição de material técnico. A fim de manter a duração razoável, tive que presumir que o leitor chega a este capítulo com bastante conhecimento técnico. Tentei escrever para um leitor ideal que estudou previamente a relatividade geral ou a teoria da medida, e portanto se sente confortável com os conceitos básicos, resultados e construções da geometria diferencial (embora em alguns pontos estratégicos eu tenha incluído a discussão destinada a fazer correr a memória de tais leitores).

Este capítulo é baseado na abordagem geométrica moderna da mecânica Lagrangiana que é apresentada no esboço mais bizarro na seção 4. Esta abordagem, desenvolvida relativamente recentemente por matemáticos, fornece um quadro altamente abstrato para pensar sobre teorias físicas ao invés de um tratamento totalmente rigoroso de qualquer teoria. Ela existe a nível formal, diferencial-geométrico: o foco está na estrutura geométrica de vários espaços e no conteúdo geométrico de equações e construções; os detalhes analíticos funcionais são mantidos em suspenso. Grande parte do material esboçado em outras seções funciona neste mesmo nível.

Em conteúdo, este capítulo se sobrepõe um pouco com , e . O capítulo Butterfield fornece uma introdução filosófica às abordagens geométricas modernas da mecânica; o presente capítulo pretende ser um exemplo da aplicação desta abordagem a um problema filosófico. O presente capítulo é, no entanto, destinado a ser auto-contido. E há de fato uma diferença considerável na ênfase entre este capítulo e o de Butterfield: este último é restrito aos sistemas finitos-dimensionais, e focaliza o lado Hamiltoniano das coisas; o presente capítulo se ocupa principalmente das teorias de campo, e focaliza em muito maior medida a abordagem Lagrangiana.

REMARK 1 (Notação e Terminologia).

Elementos e estruturas no espaço de soluções de uma teoria de campo são sempre indicados por letras maiúsculas (grego ou latim) enquanto elementos e estruturas no espaço de dados iniciais de uma teoria de campo são sempre indicados por letras minúsculas (grego ou latim). Boldface indica funções com três vectores ou três vectores-valorizados. Neste capítulo, uma curva é oficialmente um mapa de intervalos de números reais para um espaço que é um múltiplo ou uma generalização suave de um múltiplo – às vezes, para ênfase, chamo redundantemente uma curva de uma curva parametrizada. Uma curva afinamente parametrizada é uma classe de equivalência de tais curvas, onde duas curvas contam como equivalentes se elas tiverem a mesma imagem e sua parametrização concordar com uma escolha de origem.8 Uma curva não parametrizada é uma classe de equivalência de curvas, sob a relação de equivalência onde as curvas contam como equivalentes se elas tiverem a mesma imagem. Eu às vezes confilo uma curva e sua imagem.

REMARK 2 (Possible Worlds Talk).

Below, especialmente na seção 7, eu às vezes falo de pontos do espaço de soluções (dados iniciais) como representando mundos possíveis (possíveis estados instantâneos) permitidos pela teoria, mesmo que eu não finja estar envolvido em questões finas de interpretação aqui. Este tipo de coisa só é entendida de uma forma grosseira e heurística. A idéia é que ao tentar entender uma teoria, estamos em parte envolvidos na busca de uma formulação perspícua da teoria; e é razoável esperar que se uma formulação for perspícua, então existirá uma interpretação prima facie atraente da teoria segundo a qual há uma bijecção entre o espaço de soluções (dados iniciais) e o espaço de possíveis mundos (possíveis estados instantâneos) admitidos pela teoria sob essa interpretação. Isto não é para negar que pode haver razões para rejeitar tais interpretações: um Leibnizean pode assentar numa formulação padrão da mecânica clássica, mesmo que isso signifique ver a relação de representação entre as soluções e os mundos possíveis como sendo de muitos para um em virtude de que as soluções relacionadas por uma tradução temporal devem ser vistas como correspondendo ao mesmo mundo possível.

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